Reproduzimos a entrevista publicada no Portal Galego da Língua:
Elias Torres, Roberto Samartim: “Os agentes que se movem polo sistema cultural galego estão relativamente cómodos nas suas respetivas tradições”
Através Editora acaba de pôr nas livrarias Sobre conflito lingüístico e planificação cultural na Galiza contemporánea, com este motivo Teresa Crisanta Pilhado, diretora da Através, entrevista Elias J. Torres Feijó e Roberto Samartim.
O livro está formado por cinco artigos de cada um de vós, todos eles ligados com a planificação linguística e cultural. Para além duma visão explicativa da situação atual, vamos encontrar alguma proposta?
Parece-nos que vamos, mais como consequência que como explicitação. Só algumhas, como exemplo:
- Se se quiger avançar na coesão social e galeguista, convém desenhar políticas culturais integradoras, em que o conjunto de possibilidades e o grau de aderência seja plural; precisamos impulsar mais manifestações e colocá-las no centro da galeguidade, por exemplo.
- Consequentemente, território/paisagem ou alimentos/gastronomia devem, por exemplo, passar para um mais destacado primeiro plano. Eles nutrem-se de afetividades identitárias ou prazeres mui alargados e comuns à gente.
- Agindo com vontade, programa e estratégia, podem conseguir-se bons resultados; e provavelmente nem sempre será preciso acudir a vias institucionais. Um reduzido número de pessoas elaborarom um projeto, sensu amplo galeguista, e chegou até aos nossos dias. Aquelas pessoas, entre as quais hoje conhecemos como destacadas Rosalia ou Murguia utilizarom um conjunto relativamente alargado de propostas vinculadas à galeguidade. Fosse consciente ou não esse alargamento como modo de integração, o caso é que tivo relativo sucesso. Rosalia é um exemplo de êxito, apesar e por cima das penalidades que a sua pessoa e obra sofrerom.
- Saber priorizar em função dos recursos e das pessoas a quem se quer somar a umha proposta de coesão galeguista. E não funcionar com ideias pré-concebidas derivadas dos interesses ou do prestígio que determinadas atividades podem ter para os grupos promotores. Por caso: o trabalho que muitas pessoas jovens estão a desenvolver com a música é notável e pode entender-se que essa é umha via potencial e potente de alargamento e coesão galeguistas: talvez haverá que priorizá-lo frente a outras atividades editoriais.
- Que de tudo podemos tirar ensinamentos e que mudar de rumo quando os objetivos não estão sendo atingidos não pode estar supeditado a ideias essencialistas e pré-concebidas mas à procura de coesões satisfatórias: definir bem os objetivos e não confundi-los com os meios parece fundamental.
Tendo em conta o conjunto de textos do livro, que conclusões podemos tirar sobre a relação que há entre a planificação cultural e a codificação linguística?
O primeiro trabalho do livro começa abordando a fase mais étnica do nacionalismo, em que os grupos galeguistas faziam residir a identidade diferencial da Galiza em determinações como o celtismo, ainda que, naturalmente, assomassem muitos outros traços, a começar pola língua ou a valorização do território; a partir daí os contributos analisam o que acontece com maior rotundidade nos séculos XX e XXI, quando o conjunto do galeguismo entende já a língua galega como o único marcador etno-identitário imprescindível para a coesão e a continuidade da nossa comunidade. Assim concebida, a língua passa a ser entendida como metonímia da comunidade (nacional), ligando umha à natureza e ao destino da outra, e colocando em posição secundária outros elementos identitários que, ou atingirom um menor consenso e tiverom um grau de socialização menor, ou diretamente são secundarizados ao lhes atribuírem os grupos mais centrais menor representatividade da identidade diferencial do País (e há aqui umha deriva para o “monocultivo identitário”, por dizê-lo graficamente, que haverá que levar em conta, porque pode até não ser útil para o reforço da identidade diferenciada da comunidade…).
Poderíamos dizer que, em boa medida, toda a planificação cultural do galeguismo gira em volta da incorporação ou da extensão do uso da língua galega em diferentes campos, quer seja o literário já desde o século XIX, quer seja o musical ou o audiovisual durante a passagem da ditadura franquista para o regime autonómico. Por outras palavras, a superação dos défices que os vários grupos galeguistas detetam passará primeiro pola incorporação da língua galega e, só agregado a isso ou depois, por implementarem estratégias destinadas a aplicarem o resto dos programas concretos nos campos em jogo. O trabalho planificador do galeguismo consistirá então, antes de mais, em impor legitimamente ao conjunto do sistema a baliza linguística para que a cultura galega seja a cultura em galego, umha ideia que conseguiu triunfar e é consensual hoje nuns campos (como o literário desde o final do franquismo) e que também explica que sejam entendidos como deficitários (ou até inexistentes na cultura nacional galega) aqueles campos em que a presença do galego é residual (o jornalístico, por pôr um exemplo).
E se a língua ocupa esta posição central, será igualmente determinante para a natureza do sistema cultural e da comunidade que o acolhe o processo da sua codificação, isto é, de seleção, socialização e imposição legítima daqueles materiais (linguísticos, culturais, identitários, simbólicos) com que os diferentes grupos querem identificar a comunidade. E aqui também nem sempre há consenso, claro: estão em jogo os interesses polo controlo dos vários campos, as posições, as origens e capacidades dos agentes, o valor atribuído a umha determinada tradição ou às falas entendidas como populares, a relação que se quer da Galiza com outras comunidades e daí para a frente… A situação chega ao ponto de alguns grupos identificarem a língua com umha determinada norma, e as suas estratégias irem encaminhadas à implementação em regime de monopólio, segundo as possibilidades e visões de cada quem, desse modelo nos novos campos abertos para o galego (como o ensino, por sinal). Todas estas questões são atendidas no livro, com especial atenção à presença e referencialidade portuguesa, diferente para os vários grupos ativos no sistema e em vários momentos e estados de campo.
Neste sentido, permita-se-nos apenas mais um esclarecimento: no livro é possível verificar como as comunidades de língua portuguesa funcionam como o espaço cultural em que as elites galeguistas querem integrar a Galiza até que o ILG constrói o seu modelo linguístico em oposição ao português em inícios de setenta, pegando para isso na ideia do galego popular que, diga-se de passagem, é legitimada a partir da Universidade polo ILG e também vai ao encontro de práticas habituais e ideias centrais do nacionalismo de esquerdas mais organizado da altura (grupos que se reposicionam no período autonómico na direção de discursos e modelos pró-reintegracionistas, e que em 2003 aceitam a autoridade do par RAG-ILG para fixarem os materiais com que deve ser identificada a comunidade). Daí deriva a centralidade que na sociedade galega atual tem a ideia institucionalizada de que o galego é umha língua (irmá pero) diferente do português, mas também essa nova função atribuída ao português no campo linguístico acaba por se estender para o conjunto do sistema e explica o caráter periférico (ou até a ausência, dependendo do campo de que falemos…) que a referencialidade lusófona tem na cultura galega autonómica. Contraste-se com o nível de enquadramento das práticas e os discursos de cada agente na cultura espanhola e poderemos ter umha ideia ajustada de qual é o espaço de integração ou interlocução priorizado do conjunto do sistema na atualidade e, até, em que medida contribui cada quem para isso.
Elias, num dos teus artigos trata-se a recuperação cultural galeguista no franquismo. Quais as consequências atuais desse impulso? Que se poderia ter feito diferente ou melhor?
Tudo leva a pensar que era mui difícil e que algumhas das circunstâncias coercivas tolhiam bastante as possibilidades: num quadro ditatorial, espanholista e hostil às manifestações galeguistas ou em galego que pudessem concorrer com outras de índole diferente ou significar expressões de identidade galeguista, mover-se entre perspetivas como o popular e o populacheiro, segundo quem as focasse e usasse, como entre o culto e o erudito, ou atender a muitas e diversas formas de cultura devia ser complicado. Atrevo-me a dizer que foi na década de setenta (quer dizer-se, na preparação dum tempo pós-ditadura) onde forom tomadas decisões que talvez puderom ser outras e melhores:
a) Liquidou-se praticamente todo elo e contato com a emigração e o exílio: não se aprendeu da perspetiva excêntrica, dos enclaves europeus ou sul-americanos, não se integrou suficientemente a perspetiva do exílio; nem se agiu com coragem perante propostas concretas (um exemplo: o Manifesto dos 13 de Roma)
b) Planificou-se mal a extensão do galego a âmbitos em que não estava, caso da escola: não se procurarom alianças nem aliad@s no mundo de língua portuguesa nem em todas as comunidades galegas fora da Galiza (para o qual umha opção que tivesse como norte a confluência futura com as normas do português seria desejável), orientou-se o galego a umha visão (falsamente) popular (próxima do espanhol na sua prática, convertendo as precariedades resultado da marginalização de povo e cultura em determinantes e parâmetros estruturais: o povo só sabe espanhol; ergo, o galego deve parecer-se a ele e escrever-se parecido a ele) e sem nengumha visão de mínimo futuro: incidiu-se em excesso em questões de norma ortográfica e morfológica (e não, por exemplo, em prosódia, sotaques ou léxico); carregou-se o idioma com todo o peso identitário, colocando-o, de facto, numha situação sem saída, portadora do conflito, mais ainda vinculando galeguidade a uso e não a apoio, o qual tinha e tem como consequência umha secessão social importante relativa a ele; e, mais ainda, quando sistematicamente é definido como rural, atrasado, pobre, fracassado (muito finca-pé se faz nisto na sua história no ensino, por exemplo; e isso contamina o ser visto como proposta).
c) Ao mesmo tempo, e não paradoxalmente, não forom procurados ou potenciados espaços de interseção cultural e identitária de maneira forte com os diversos setores sociais que formam a sociedade galega, dando-lhes sentido de comunidade.
d) Não se abriu um conjunto de possibilidades diversas e transitáveis (a transição é chave nestes processos, acho eu) do ser (cultural) galego, que permitisse a aderência das pessoas aos diversos projetos que colocassem a auto-estima coletiva e os vários modos de construí-la no centro da atividade. Faltou pluralidade e sobrou hierarquia na importância dos fatores em jogo: o caso e situação da língua parece-me claro.
Roberto, perguntei ao teu companheiro Elias que foi o que se poderia ter feito melhor na época franquista para a recuperação do galego. A mesma pergunta para ti mas neste caso no contexto não do franquismo mas dos anos setenta do século XX, já com um sistema cultural galego institucionalizado.
Bom, acho que a resposta de Elias já dá conta perfeitamente desta questão…
De qualquer maneira, não sei se podemos falar dum sistema cultural galego institucionalizado nos anos setenta… Parece-me que há um antes e um depois nesse processo só a partir da cessão da autonomia política e a institucionalização do regime autonómico resultante do processo constituinte espanhol. E o resultado desse processo político fixa um quadro de possibilidades relativamente restrito aos olhos dos grupos com programas mais galeguizadores. Sirva de exemplo a cooficialidade subalterna que para o galego depara a constituição espanhola e o estatuto de autonomia galego: castelhano como espanhol, língua geral e de conhecimento obrigado versus galego como direito individual para ser exercido nos limites administrativos de quatro províncias. Sem esquecermos que a gestão das políticas públicas do novo regime (tanto dos recursos como dos discursos com mais possibilidades de socialização) descansa de regra em administrações que nem desenvolverom em excesso nem, muito menos, tensionarom esse quadro de possibilidades, como sim aconteceu noutros casos relativamente próximos (e a referência a Catalunha e Euskadi terá de surgir agora na conversa).
E também julgo que há grupos que se adaptam melhor do que outros ao novo regime, os primeiros contribuindo em maior medida para a construção e constituição do novo sistema autonómico, ao mesmo tempo que o seu próprio processo de institucionalização também progressa. Vejamos, se não, o caso de Galaxia, que no fim da “transición” espanhola vê reforçada e melhorada umha posição que já era a mais institucionalizada no tardofranquismo, como demonstram, acho, o pacto com o ILG para a elaboração e oficialização posterior das NOMIG de 1982, a atribuição da autoridade sobre o código linguístico na Lei de Normalización Linguística de 1983 a umha RAG controlada por Galaxia desde os anos cinquenta, a criação em julho do mesmo ano 83 do Consello da Cultura Galega (gerido por agentes de Galaxia desde então, e incluindo depois aqueles procedentes do ILG), e outros exemplos que ainda poderiam ser colocados.
E por outro lado, também acho que o espaço que se postula como alternativo a essa cultura autonómica oficializada, o do nacionalismo da esquerda com maior presença social e institucional, verificou-se como melhor dotado para a resistência do que para a resiliência. Parece-me (é umha opinião impressionista e portanto discutível, claro) que esse espaço dedicou mais energia a reproduzir as ideias próprias, elaboradas durante o franquismo, utilizando para isso aqueles campos ou instituições em que tem presença destacada (o ensino secundário, o campo literário nalgumha medida, ou algum poder político local ou provincial), e menos à criação de modelos realmente novos ou alternativos a essa cultura que pretensamente quer ser impugnada, ou a questionar criticamente se as próprias ideias são de aplicação na Galiza atual ou precisam ser revistas ou, até, substituídas por outras (mesmo procedentes da tradição galeguista) que melhor contribuam para o bem-estar e a soberania político-cultural da Galiza, alvo que esses mesmos grupos dizem querem atingir. E nalgumha medida isso também poderá ser dito dos periféricos reintegracionistas, também resistentes e filologizados, sobretudo até a mudança de estratégia operada, já andando o século XXI, neste espaço, aliás o de impacto mais reduzido no conjunto do sistema.
Em síntese, poderia parecer que os agentes que se movem polo sistema cultural galego estão relativamente cômodos nas suas respetivas tradições e, sobretudo, posições, e que estas dificilmente serão postas em risco. E daí esta calma, e daí a direção em que a nave vai …
Ora, parece-me também que dentro desses limites de que falava acima, há várias possibilidades que não foram suficientemente exploradas, quiçá porque dificilmente o permitiriam os modos de ver a realidade política de cada grupo, as várias culturas organizacionais envolvidas e, sobretudo, o modo como entre tod@s fomos construindo a língua e a cultura galegas em relação com Portugal e as lusofonias no regime autonómico, assunto do que falámos já acima. Por colocar apenas um exemplo, e só por alargar um bocado a resposta dada por Elias à pergunta anterior: a situação descrita acima pode ajudar a explicar a incapacidade dos vários agentes envolvidos para entender a chamada normalização (linguística, cultural) como um processo em que nos vamos construindo junt@s mais do que como o resultado dumha luita pola posição própria ou polo monopólio do sistema. Se isso fosse doutra maneira, quiçá tivesse sido possível convencionar um modelo (provisório, transitório) cuja aplicação não fosse questionada na administração e no ensino obrigatório, em troca da liberdade de ação e de prática linguística em todos os campos de criação e de opinião, e também em troca da aplicação de um conjunto de medidas transversais e encaminhadas ao reforço da consciência linguística unitária galego-portuguesa, ou o que vem dar na mesma, ao reforço do próprio sistema cultural galego. Por exemplo, por falarmos apenas no campo do ensino, esse que surge para o galego com a autonomia política, umha outra relação de forças no campo político e também outras culturas grupais quiçá figessem possível tecer consensos em que toda a gente ganhasse algumha cousa, e pudéssemos assistir assim à aprendizagem em determinados níveis de ensino doutras variedades do sistema compartilhado (não diretamente galegas ou galegas até), ou à presença de materiais culturais lusófonos nos programas de estudo (isto contemplado já na primeira programação de língua e literatura galegas para o COU, em inícios de oitenta, até que foi banido sem os grupos galeguistas elevarem qualquer protesto sobre eventuais impacto e consequências). Mas em vez disso, as estratégias autonómicas passarom mais por impor as NOMIG ao conjunto do sistema (no campo literário até com consentimento/ colaboração dos pares, que acrescentam assim capitais eliminando concorrências), ou por sustentar modelos alternativos até que, nalgum caso, estes são depois abandonados sem qualquer explicação pública nem aparente autoanálise, ou por aguardar pacientemente pola cooptação…
É muito estendida a ideia de que a norma RAG-ILGA é a legítima por ser a “oficial”. É isto assim?
É, e não é. No livro usamos em bastantes oportunidades a denominação de “norma oficial” mas não num sentido prescritivo (nada há nas leis que obrigue a utilizar umha determinada norma; não há, pois, ‘norma legal’ e não deve confundir-se ‘legal’ com ‘legítima’) e sim político: é a que é apoiada polo governo e polas instituições dele dependentes. Na medida em que para as pessoas esse apoio, consistente na sua promoção e na proscrição de outras possibilidades, é relevante e assumida como boa, ela está legitimada. É legítima, pois, se as pessoas e entidades aderem ao que o governo apoia por um lado e proíbe polo outro (deslegitimando o outro). E aqui nasce a tristeza e o erro de magnitude fulcral para a continuidade do galego: deslegitimar o uso do português nas suas diversas manifestações ou normas nele referenciadas (caso da Norma histórica da AGAL) na Galiza é deslegitimar boa parte do trabalho galeguista que nos trouxo até aqui e do projeto galeguista; mas, ainda mais importante, é virar costas às normas irmãs de onde bebemos e que mantiverom umha referência fundamental para aquele trabalho; quebrar alianças reais no mundo; impedir os galegos e as galegas de poderem aceder a mais bens e ferramentas com a sua língua (e, fechá-los num circuíto que serve a reduzidos interesses de determinada indústria cultural e, atenção, política), impedir parceir@s galeguistas de, simplesmente, poderem funcionar com normalidade e igualdade ao resto. Deste ponto de vista, a norma RAG-ILG não perde legitimidade em si, mas poderá vir a perdê-la de maneira extraordinária quem trabalha para a sua imposição e preterição ou proscrição de outras; isto é (já mesmo o foi mais quando alguns dos proscritos hoje vivem à conta do seu uso e da proscrição de outros) umha questão moral; mas acho que a moral é fundamental na sociedade; e é também umha questão política; só que aquelas que a praticam só, penso eu, serão deslegitimados por quem, no futuro, ainda quigesse que o galego durasse e se encontre sem recursos instrumentais nem sociais para isso. É como quem faz umha política extrativa à custa do ambiente e a saúde dos que com ele convivem e, sobretudo, dos que hão de vir; fizo-se rico e deixou o rio irreversivelmente contaminado. É, nesse quadro, onde a Lei Paz Andrade podia abrir espaço à irreversibilidade, que é um facto: o galego caminha para umha posição ainda mais marginal, com um conjunto de utentes que não irá ultrapassar no médio prazo 30% da população, com menor presença nos setores sociais e habitacionais mais dinâmicos, e com um conjunto de reivindicação de uso ou de promoção do mesmo, nesse 30%, mui reduzido.
Entendo que o Dia das Letras nasceu com a vontade de homenagear e recuperar a memória, mas qual é a função atual do Dia das Letras no sistema literário galego?
O Dia das Letras é hoje muita cousa, desde um impulso à indústria editorial até umha mostra das estratégias e capacidades da RAG para manter a centralidade, mas sobretudo é o principal elemento de consagração do sistema literário galego, um evento que reforça o peso da tradição no conjunto do sistema e que, nesse sentido, pretende dizer-nos como somos ou devemos ser, fixar aquilo que deve ser lembrado (e como) ano após ano.
Faltam estudos sobre a função que desempenha o Dia das Letras no sistema (o qual já pode dar conta das faixas de unanimidade e consentimento em que nos movemos também no campo académico galego) mas sim existe algum trabalho (de Raquel Bello Vázquez ou de Cristina Martínez Tejero, por exemplo) que aponta para o facto de que o Dia das Letras exerce um impacto de, digamos, “terra queimada” na projeção da figura homenageada, cuja produção e trabalhos a ela dedicados aumentam abruptamente nesse ano para ser depois silenciada durante a década seguinte.
Ora, o Dia das Letras é também umha possibilidade que se abre para os grupos em disputa pola construção do sentido comum, que cada quem aproveitará, ou não, em função das suas posições, estratégias e capacidades. Isto para dizer que o espaço mais institucionalizado nem sempre é capaz de controlar todos os discursos em volta do Dia das Letras nem todos os seus efeitos. Umha boa mostra disto é, parece-nos, a utilização feita polo reintegracionismo do Dia das Letras dedicado a Paz-Andrade para o impulso da ILP com este nome, resultando disto a institucionalização por primeira vez na história da Galiza de um quadro de relacionamento galego-lusófono que pode alargar substancialmente o leque de possibilidades para a cultura e a comunidade galegas (outra cousa já é por quem, como e em que medida esta legislação está a ser aplicada, claro).
Parece-nos que o reintegracionismo deveria levar em conta este tipo de cousas aos efeitos da planificação das suas ações e a definição do seu programa. Por exemplo, e acabamos, como assiste o reintegracionismo à tradicional notícia anual de que a RAG não dedica o Dia das Letras a Carvalho Calero? Quiçá fosse bom fixar posição e marcar estratégia não apenas perante essa notícia mas também por se lho dedica (ou melhor, para quando lho dedicar). Se calhar o reintegracionismo tem de definir nalgum momento qual é a relação e a interlocução que quer ter com a RAG e com o que ela simboliza ou com aquilo de que ela é expressão: se reconhecemos ou não a sua autoridade; se só para a fixação da tradição (da memória da comunidade), só para o modelo linguístico de aplicação na administração, em ambos os casos, em nengum, … Não parecerá umha questão menor se pensarmos que das nossas estratégias e das nossas ações presentes pode depender, em boa medida, o futuro da nossa comunidade.